Devaneios
Todos os dias ela fazia o mesmo caminho de volta do colégio para casa. Sempre passava pelos mesmos lugares, cumprimentava as mesmas pessoas, observava as mesmas coisas...
Era uma menina comum. Nem muito alta, nem muito baixa. Nem muito magra, nem muito gorda. A única coisa que a fazia especial, segundo ela, era a cor dos olhos: negros, como se não houvesse nenhuma possibilidade de passagem de luz, e como se tudo o que ela visse fosse escuridão. Pelo menos era essa a imagem que faziam da sua visão de mundo.
Costumavam dizer que ela metia medo com o olhar. Uns realmente tinham medo dela. Outros ousavam dizer que eram seus amigos. Mas ela não estava nem um pouco preocupada, afinal, tinha plena consciência de que o seu olhar era capaz de ir bem mais longe do que todos acreditavam.
Num desses dias de volta para casa, após passar pelos mesmos lugares e cumprimentar as mesmas pessoas, observou algo que, antes, nunca havia chamado a sua atenção: uma pegada no cimento.
Isso era o mais legal de manter sempre o mesmo roteiro, dizia ela, a cada dia, a cada passo, você presta mais atenção em cada pedra pisada. E essa pedra pisada vira novidade cada vez que você pisca diferente.
O que mais a intrigava não era, de fato, a pegada. Mas sim a forma dela e como ela parecia ter sido feita há anos... Era de uma bota. Tinha o salto quadrado e grosso e o solado era firme e sem textura nenhuma.
De repente, a menina começou a imaginar cavalos correndo por aquela mesma rua. Aquela, uma esquina antes de chegar à sua casa, em que ela estava parada agorinha, mesmo. Cavalos grandes, esguios, com cavaleiros bonitos e fortes, em cima deles, manuseando espadas ou rifles e lutando contra um inimigo qualquer.
Algo lhe chamou à realidade. "Estamos no Brasil", pensou ela. "Mas e daí? Quem disse que no meu Brasil não podem haver cavaleiros bonitos e cavalos esguios?". Fechou os olhos, esqueceu da rua e imaginou, novamente.
Trabalhadores misturavam uma massa cinza, enquanto mocinhos ensaiavam para um futuro conflito. Filhos de grandes proprietários treinavam subidas e descidas de seus cavalos enormes. Vestiam camisa de algodão, calça justa, branca, e uma bota de couro marrom.
Por um instante, um dos alunos em cima do cavalo se distrai. Enquanto o professor agitava a espada, ele abaixa a cabeça e escorrega da sela e cai com a bota no cimento fresco, na calçada do lado direito da rua.
"Moça"
O instrutor reclamava e o cutucava com a espada.
"Preste atenção!"
"Eu não quero!"
"Preste atenção! O farol abriu."
E como se tivesse caído da cama, seu devaneio foi despertado por um estranho a cutucando e informando que o farol de pedestres estava aberto.
"Obrigada."
Agradeceu e foi para o outro lado da rua, em direção à sua casa. Quantos mistérios a rua ainda guardava? Não se sabe. Cada dia ela descobre uma coisa nova.
E pensar que foi só abrir os olhos...
[Desculpe... me empolguei...]