Sopa de Letrinhas

segunda-feira, agosto 13, 2007

Devaneios

Todos os dias ela fazia o mesmo caminho de volta do colégio para casa. Sempre passava pelos mesmos lugares, cumprimentava as mesmas pessoas, observava as mesmas coisas...

Era uma menina comum. Nem muito alta, nem muito baixa. Nem muito magra, nem muito gorda. A única coisa que a fazia especial, segundo ela, era a cor dos olhos: negros, como se não houvesse nenhuma possibilidade de passagem de luz, e como se tudo o que ela visse fosse escuridão. Pelo menos era essa a imagem que faziam da sua visão de mundo.

Costumavam dizer que ela metia medo com o olhar. Uns realmente tinham medo dela. Outros ousavam dizer que eram seus amigos. Mas ela não estava nem um pouco preocupada, afinal, tinha plena consciência de que o seu olhar era capaz de ir bem mais longe do que todos acreditavam.

Num desses dias de volta para casa, após passar pelos mesmos lugares e cumprimentar as mesmas pessoas, observou algo que, antes, nunca havia chamado a sua atenção: uma pegada no cimento.

Isso era o mais legal de manter sempre o mesmo roteiro, dizia ela, a cada dia, a cada passo, você presta mais atenção em cada pedra pisada. E essa pedra pisada vira novidade cada vez que você pisca diferente.

O que mais a intrigava não era, de fato, a pegada. Mas sim a forma dela e como ela parecia ter sido feita há anos... Era de uma bota. Tinha o salto quadrado e grosso e o solado era firme e sem textura nenhuma.

De repente, a menina começou a imaginar cavalos correndo por aquela mesma rua. Aquela, uma esquina antes de chegar à sua casa, em que ela estava parada agorinha, mesmo. Cavalos grandes, esguios, com cavaleiros bonitos e fortes, em cima deles, manuseando espadas ou rifles e lutando contra um inimigo qualquer.

Algo lhe chamou à realidade. "Estamos no Brasil", pensou ela. "Mas e daí? Quem disse que no meu Brasil não podem haver cavaleiros bonitos e cavalos esguios?". Fechou os olhos, esqueceu da rua e imaginou, novamente.

Trabalhadores misturavam uma massa cinza, enquanto mocinhos ensaiavam para um futuro conflito. Filhos de grandes proprietários treinavam subidas e descidas de seus cavalos enormes. Vestiam camisa de algodão, calça justa, branca, e uma bota de couro marrom.

Por um instante, um dos alunos em cima do cavalo se distrai. Enquanto o professor agitava a espada, ele abaixa a cabeça e escorrega da sela e cai com a bota no cimento fresco, na calçada do lado direito da rua.

"Moça"

O instrutor reclamava e o cutucava com a espada.

"Preste atenção!"

"Eu não quero!"

"Preste atenção! O farol abriu."

E como se tivesse caído da cama, seu devaneio foi despertado por um estranho a cutucando e informando que o farol de pedestres estava aberto.

"Obrigada."

Agradeceu e foi para o outro lado da rua, em direção à sua casa. Quantos mistérios a rua ainda guardava? Não se sabe. Cada dia ela descobre uma coisa nova.

E pensar que foi só abrir os olhos...


[Desculpe... me empolguei...]

quinta-feira, agosto 09, 2007

Sobre-viver.

Tudo é igual na vida na selva. As famílias de semelhantes se agrupam e formam colônias, que escolhem meticulosamente seus habitats prediletos.

As cobras continuam articulando suas línguas e destilando seu veneno; babuínos, com suas bundas rosadas e seus corpos exalando fertilidade, brigam por fêmeas robustas.

Leoas caçam. Atacam. Destróem. Enquanto avestruzes, com vergonha da situação, apenas sublimam os acontecimentos, enfiando suas cabeças na terra.

Do outro lado, pavões abrem suas suntuosas plumas e se exibem, causando furor, inveja e risadas de hienas totalmente dispersas.

Enquanto isso acontece, uma onça observa tudo ao seu redor, esticada no galho de uma árvore. Abstraindo-se dos sons, ela finalmente conclui que a confusão não passa de uma tentativa desesperada de sobrevivência.

[Qualquer semelhança com uma sala de aula é mera coincidência.

P.S.: Não existem coincidências.]

PARE-SER

O mundo está de cabeça para baixo e mergulhado em um balde de anabolizante. O homem cultiva uma "realidade irreal" e busca no espelho uma imagem idealizada pela mídia. Por quê? Ser, ter, querer e parecer são coisas completamente diferentes. A natureza do homem se choca com padrões que ele próprio criou, e, cada vez mais, essa padronização causa efeitos negativos.

Um exemplo disso é o número de mulheres que correm para as academias, clínicas e centros estéticos, a fim de queimar o excesso de gordura, ganhar massa muscular, endireitar costas, rosto, cintura e glúteos, apenas para, quando chegar o verão, desfilarem de biquini por todas as praias do país, em seus belos, secos e "ossudos corpos esculturais".

Os homens não são muito diferentes das mulheres. É bastante comum ver algumas - muitas - silhuetas masculinas em academias. O fanatismo deles, em relação ao cultivo de uma boa forma, é bem maior e pode ser explicado por duas palavras: instinto animal. O mais belo, mais forte, mais atraente, sempre consegue as melhores fêmeas.

A mídia é a principal responsável pela padronização exagerada. Revistas, jornais, televisões, mostram o contraste da atriz da "novela das oito" com a reportagem da morte de uma adolescente anoréxica. A "bundalização" se faz presente nos comerciais. Por trás da cerveja há um padrão. Por trás do refrigerante há um padrão. E o povo vai à loucura.

Mas que loucura é essa que não deixa o ser humano conjugar o verbo que lhe foi designado? SER humano. Não é errado pensar ou querer. O único problema é que o parecer se sobrepõe ao natural. A busca pela suposta perfeição acaba lotando essas tais academias. O homem, por sua vez, malha só o corpo e atrofia o cérebro. Pare, ser. Pense.


[NOTA:só pra situar, ambos os textos postados sobre o "corpo" foram escritos para o Simulado do colégio. A Sa esqueceu de dizer, né, Sa?! =P]

quarta-feira, agosto 08, 2007

Se o teu futuro espelha essa grandeza

O culto ao corpo não é algo recente. Desde a antigüidade já se adorava essa "máquina de carne e osso" como uma das mais belas criações de Deus, basta observarmos a cultura grega. O corpo era tido como um templo sagrado, que devia ter a manutenção adequada.

O fato é que, com o passar do tempo, os padrões de beleza foram-se alterando drasticamente. O que antes era considerado belo, passou a despertar repugnância naqueles que se encontravam de acordo com as normas estipuladas pela "indústria da estética". Iniciou-se então, uma luta desenfreada pela perfeição.

Mais do que depressa, as indústrias poderosas adotaram essa "causa da beleza" para estipularem seus padrões. As pessoas se viram forçadas a recorrer a medidas extremas para se adaptarem às novas leis da estética. E o Brasil, conhecido pela beleza de seu povo, não ficou atrás.

Um país marcado pela miséria e pela fome, com milhares de desempregados, passou a ser líder no que diz respeito ao número de cirurgias plásticas. São Paulo, sua grande metrópole, com seus condomínios de luxo e carros importados possui milhões de pessoas abaixo da linha da pobreza. E daí? As mulheres continuam lindas!

Plastificou-se o Brasil! A realidade pobre passou a ser disfarçada por luxo. As pessoas se esconderam atrás de Armanis e Pradas, ignorando aqueles que não têm como se vestir. "Se as pessoas não têm o que comer ou aonde morar, não é culpa minha! E fica longe de mim! Odeio pobre! Pobre é feio!"

Muitos se esquecem de que, ao morrerem, seus maravilhosos corpos esculpidos artificialmente virarão pó, e a oportunidade de serem mais do que isso se esgotou. Enquanto continuarmos a ser superficiais como nosso corpo, não haverá mudanças. Será que o Brasil é o espelho do povo ou o povo é espelho do Brasil?

domingo, agosto 05, 2007

Mulher no volante...

Vamos, Vitória! Você consegue! Não é tão difícil assim! Respira fundo. Tá! Agora dá partida. Beleza! Engata a primeira... Isso! Não parece tão difícil, parece? Ótimo! Acelerando... Ai caramba! Por que que essas colunas do estacionamento são tão próximas? Parece que eles fazem de propósito, só pra gente ter mais chance de arranhar a pintura do carro! Mas você vai conseguir! Mais um pouquinho... Só mais um... Pára! Engata a ré... Pronto! Acelera de novo... Ah! Agora deu! O espelho! Ufa! Foi por pouco!

Enfim a rua! Quem parou esse carro aí? Ele está praticamente bloqueando a passagem! Ô moço, deixa eu passar! Assim não dá! Eu preciso virar na próxima rua! Ai, desculpa! Eu não queria te fechar, juro! Mas esse cara não sai da frente! Respira Vitória, respira! Ficar nervosa não ajuda em nada! Acelerador, embrea... Não morre! Já vai, já vai! Já tô dando partida de novo! Tá! Como é que era mesmo? Primeira? Primeira!

Para onde agora? Ah! Marginal! Putz... Essa hora tá muito trânsito! Calma! Você vai chegar lá! Fica à esquerda, é a pista que tá andando. Ótimo! Agora parou - pra variar! Vamos tentar a da direita, que agora está andando! Parou! Odeio essa lei de Murphy!

Ai... Um caminhão! E agora? Eu preciso ir pra lá! Pra lá, daquele lado! Se você não sair daí, eu vou perder a saída! Sai! Eu vou perd... Droga! Passei! Calma! Mais pra frente tem um retorno! Aonde é que era mesmo? Ah sim, 500 metros! Já fica à esquerda, senão você perde de novo! É nessa rua que é pra virar? É! Qual é o nome dela mesmo?

Ótimo! Você está quase lá! É só passar dois faróis e virar à direita. Pára! Por pouco você não pega o pedestre! Mas ele que tá errado! Custa atravessar em cima da faixa? Custa???? Um farol. Só falta mais um! Esse! Agora vira! Tá chegando! É no próximo quarteirão! Chegou!

Droga! Só tem uma vaga! Ah não! Baliza não! Tudo menos isso! Calma, Vitória! Você já chegou até aqui! Não vá morrer na praia! O que é uma baliza? Não é nada! Ok. Acelera. Pára! Marcha ré... Pára! Acelera mais um pouquinho! Tá bom! Ré de novo... Pára! Ufa! Quase que o para-choque do vizinho já era! Ai, ele me mata! Acelera... Chega!

"Vitória?"

"Oi querido!"

"Algum problema?"

"Não! Magina..."

"Quer que eu estacione pra você?"

"Não precisa, mas já que você faz questão..."

Tá vendo? Você chegou muito bem até aqui! E se o seu namorado não tivesse insistido tanto, você teria estacionado o carro numa boa! Hã, depois dizem que mulher no volante é perigo constante... Até parece!

quinta-feira, agosto 02, 2007

T.O.C.

Todo dia era o mesmo ritual. Pra dizer a verdade, toda noite.
Era uma figura engraçada, jovem. Tinha um porte atlético e sempre carregava consigo um instrumento musical nas costas e um aparelho de MP3no bolso. Os óculos estavam constantemente apoiados no nariz e tudo fazia parecer como se o par de lentes com armação colorida já fizesse parte do seu rosto.

Tinha a mania de verificar milimetricamente todas as portas da casa. Checava se realmente estavam trancadas, dando todas as voltas possíveis com a chave na fechadura. Depois, escovava os dentes, tomava água e levava um copo pro quarto - pro caso de acordar de madrugada e sentir sede.

Seu quarto era composto, basicamente, de: cama, televisão, janela, porta, armário e estantes diversas. Mas ele não precisava de muita coisa pra arrumar tudo como desejava.

Celular em cima da carteira. MP3 do lado dos óculos. Copo de água por perto. A porta era motivo constante de implicância. Mas não diretamente com ela - com o peso que a segurava. Ao menos cinco vezes por dia ele passava e arrumava com o pé, até estar perfeitamente ajustado.

Janela aberta? Não. Muito pelo contrário. Não havia sono se a janela não estivesse completamente fechada. Por isso, verificava, ao menos umas dez vezes, se a fresta estava totalmente encaixada.

Uma vez com todos os itens checados, ele se aninhava debaixo das cobertas - arrumadas, claro, com todo cuidado do mundo. Um suspiro final, cobertas até a cabeça e a ajeitada final nas roupas. Era a última coisa que fazia antes de mandar um sinal ao cérebro de "PARE" e embarcar num sono profundo, sendo despertado às 6h da manhã.

E o ritual se repetia. 365 Noites por ano.


[Não gostei muito do texto. Provavelmente farei outro sobre o mesmo assunto, mas mais dinâmico e não em formato de crônica. A personagem é legal.]
[Baseado em fatos reais]