Já estava quase amanhecendo quando J.P. desceu de seu confortável quarto para pegar o jornal, do lado de fora. Ao abrir a porta, ainda de pijaminha e roupão, e caminhar para o ar livre, topou com um ser indefinido apontando uma faca para o peito, chorando compulsivamente e gritando, num tom de melancolia:
-Eu vou me mataaaaaar!
Assustado, J.P. foi falar com o sujeito.
-Oi, calma, calma, meu senhor. O que é isso? O senhor tá bem?
-Eu não to bem!!Parece que eu estou bem??Você ouviu! EU VOU ME MATAAR!!
-AAAaai, não, não faça nenhuma besteira. Vamos, me dê essa faca.
O homem olhou com uma cara de desdém para J.P. e abraçou a faca como se fosse criança, abraçando um brinquedo.
-Não. É minha. E ela será muito útil em alguns minuuuuuuuuuuuuuuuuuuutos... - e desatou a chorar, de novo.
J.P. já parecia estar sem paciência para o pobre louco na rua.
-Moço, olha, eu vim aqui pra ajudar.
-Ajudar? Ajudar?? Ninguém precisa da sua ajuda. E mesmo que precisasse, a sua vida é perfeeeeeeeeeeita, você não está prestes a se mataaaaaaaaaaar!
-Minha vida? Perfeita?
-É, claro! Olha só o seu pijaminha! Olha só o deu jornal na sua frente! Agora olha pra mim. O que eu sssssssssssou?
Este "sou" que o indivíduo pre-suicídio pronunciou veio com um cheiro insuportável de álcool.
-Ah, tá explicado.
-Ssssssssssabe o que eu sssssssou? Eu não sssssssou naaaada.
-Olha, querido, eu tenho coisas pra fazer, contas pra pagar,problemas pra resolver... A minha vida não é perfeita, não, viu?
-Ah, é, é?
-É. E garanto que a
sua não é tão ruim, assim, para você querer dar fim a ela.
-É, siiiiim! Olha só... a minha mulher me traiu!
-Hã, tá, e daí?
-Como e daí, meu senhor? ELA ME TRAIU! CORNO! CHIFRE! TOMEI NO
-CALMA! Entendi, entendi. Mas isso não é motivo pra se matar. Tem tanta gente no mundo, você vai encontrar outra pessoa.
-Ah...ah... mas... eu ...eu sou estraaaaaaaaaaaaaanho!!
-Não, querido, você não é estranho
-Sou, siiiiiiiiiiiiiiiim!
-(Aaai, meu saco) Ok, senhor, o senhor é estranho.
-VIU, NÃO FALEI? EU VOU ME MATAR!
E esticou os braços, como num filme, e quando chegou com a faca perto do estômago, levou um tranco e se sentiu agarrado.
-Nãããããããão faça uma besteira dessas!!
-Mas o mundo não vai sentir a minha falta! Eu sou estranho!
-Nããão, você não é estranho.
E o moço, então, começou uma descrição exagerada da sua fisiologia.
-Olha o meu cabelo estranho!! Olha as minhas pernas estranhas! OHA EFFEF DENPEF EFPRANHOS! Eu pareço uma mistura de filhote-de-cruz-credo com primo de deus-me-livre.
-Ah, vai, não é bem assim...
-Cara, meu nome é estranho!
-Seu nome? Duvido. Qual o seu nome?
-Sigeberto.
-Não, filho, você não está entendendo. O álcool tá te deixando doidão. Eu perguntei o seu nome.
-Cara, você é que tá doidão. SIGEBERTO. Meu nome é SIGEBERTO.
-Ah...
J.P. coçou a cabeça, como se dizendo "desculpas" por trás da expressão facial.
-Poxa, desculpa. Seu nome é... diferente.
-NÃO! É ESTRANHO! E EU VOU ME MATAR.
A essa altura a rua toda já espiava pela janela pra tentar saber o que estava se passando.
-Ah, é?
-É.
-E não há nada que eu possa fazer pra te impedir?
-Não.
-Bombeiros, ambulância,resgate, policiais, nada?
-Não.
-E mesmo que eu tente te impedir atéééé o último momento, não vai dar certo?
-Não.
-Então tá. Bom dia.
Dizendo isso, J.P. entrou em casa e antes de sumir foi chamado.
-Eeei... você vai entrar?
-Vou, ué. Você não disse que não tinha mais nada pra fazer? Que eu não podia ajudar? Que você etava decidido?
-Ah, eu disse, mas...
-Então! Bom dia.
-Pô, cara... fica mais um pouco, vai?
-Ok, eu fico.
(...)
Um silêncio mórbido tomou conta do local. As únicas coisas ouvidas eram os carros na avenida láááá embaixo e o ruído das pessoas acordando e se movimentando ou falando dentro dos lugares. Enfim, o suicida decidiu abrir a boca.
-Sabe, cara, você é meu único amigo.
-Ah, pára com isso, você não...
-Sério, cara. O único. Quem mais faria isso por mim? Me ajudaria, me impediria de fazer uma besteira. Só alguém que realmente me amasse.
-É, sabe como é, eu nem...
-E eu não sou feliz. Eu sou triste...
-Po, às vezes a felicidade está bem ao seu lado e você nem imagina.
Sigeberto fitou J.P. dos pés à cabeça.
-Iiiiiiiiih, tá me estranhando???
-Não, não, desculpa, desculpa.
-Então, você me pediu pra voltar só pra te olhar fazendo merda e me enrolando, né?
-Não, você quer que eu me mate?? Eu me maaato!
-Camarada, "vamo pará" com essa baboseira toda. Me dá essa faca.
-Não.
-AGORA.
Como um cãozinho com medo, Sigeberto entregou a faca a J.P.
-Ótimo, ela vai servir pra gente tomar café da manhã. Pelo jeito você ainda tá grogue.
-Grogue?? Você tá me chamando de maluco?
-Nããããããão, imagiiiiiiiiiine! Eu não fariiiiiiiiiiia uma coisa dessas!
-Ok, cara, você me insultou, agora. Eu... vou... DEITAR NO CHÃO E ESPERAR UM CARRO PASSAR EM CIMA DE MIM!
-Oh, querido? Acorda! Deitar no chão? Carro?
-É! Se você não me deixa morrer em paz com a faca, que seja de outro jeito!
-Você não tá entendendo...
-Não, VOCÊ não tá...
-Você tá morto.
Sigeberto pára, de súbito, e uma cor realmente branca começa a passar pela sua face.
-...Morto?
-Sim.Morto.Olhe para os lados: você vê alguma coisa?
Estupefato, o morto suicida vê que ao seu redor não existia nada, além de pequenos apartamentinhos forrados de uma fumaça esbranquiçada e uma atmosfera etérea.
-Mas... mas...
-ÉÉÉÉÉ, você acha que esse pijaminha aqui é...SÓ UM PIJAMINHA?
-Ah, eu achei que fosse um...
-Pois é. É uma vestimenta obrigatória. Pra nos identificar. Como você acabou de chegar aqui, não tem a sua.
-Ah, é?
-É.
-E... bem, como realmente eu morri?
-Bom, tá vendo essa avenida aqui embaixo?
-Uhum.
-Então. Você estava fazendo exatamente o que fazia aqui em cima quando eu o interrompi.
-Ah, é?
-É. Só que não apareceu nenhuma alma boa pra te salvar. E um ônibus passou por você.
-Nossa! Mas... por que eu não estou tão machucado?
-Porque, por sorte,você foi amarrar os sapatos na hora em que o ônibus estava chegando. Então o veículo te arremessou por 300m. Fisicamente você não teve nada muito sangrento ou nojento. Mas o baque arrebentou com você.
-Ah... Po, valeu, cara. Tava péssimo.
-Imagino.
-Agora vem, vamos tomar o café da manhã e depois eu te levo no Departamento das Novas Almas, tá?
-Tá.
E então os dois seguiram para o "café da manhã". Sigeberto ainda andava torto,devido ao impacto, e J.P. murmurava uma frase e fazia sinal negativo com a cabeça, enquanto esperava o suicida arrumar os sapatos decentemente: "Calouros... tsc, tsc, tsc..."
[Créditos, também, para Verônica Gonçalves, que ajudou no desfecho do texto]