Sopa de Letrinhas

quarta-feira, abril 18, 2007

Bisturi

-Morreu.
-Morreu?
-É, morreu, qual o problema de entender isso? Bateu as botas, bateu a caçoleta, partiu dessa pra melhor.
-Tá, eu entendi, mas o cara disse que ele não tava...
-Fez a travessia, fechou o paletó de madeira, juntou os joelhos...
-TÁ, TÁ, ENTENDI, OK? E o que eu faço com as coisas do defunto?
-Não sei, manda pra família.
-O cara não tinha família.
-O quê? Tá brincando?
-Não, pô, to falando sério, o cara era um Zé Mané.
-É "Zé ninguém", seu animal.
-Nossa, quanta grosseria! Não tá mais aqui quem falou.
-Hunf. Acho melhor, mesmo.
-O que a gente faz, então?
-Sei lá. Veio com alguma coisa?
-Não, a ambulância disse que achou o tio jogadão na Praça da Sé, só com essa maleta vazia.
-Já viu o casaco?
-Não.
-Mas é um mané, mesmo. O cara tem casaco, tem calça COM BOLSO, tem camisa COM BOLSO e você me diz que nem se deu ao trabalho de checar se o sujeito tinha NOME?
-Ah...
-Dá licença. Eu faço isso.
E com cuidado - e um pouco de brutalidade - abriu o casaco do tiozão estirado na maca do IML. Os dois enfermeiros se olharam e chegaram mais perto do defunto.
-"Ow", vamos primeiro fazer a autópsia do corpo. Vai que chega alguém...
-Mas você não disse que o cara era indigente?
-Não, não disse nada, você perguntou se ele tinha família e eu...
-Disse que não.
Os dois conversavam como se trabalhassem juntos há anos. O tom de intimidade era o mesmo e os comentários variavam de sarcasmo a humor e indiferença. Os dois chegam mais perto e o mais velho se afasta.
-Tira a roupa do cara.
-Aaah, por que eu? Eu sempre fico com os manés e você quer tirar a roupa de todas as menininhas que chegam aqui.
-Ô, nem vem. Não reclama. Aqui só aparece trubufu.
-Sei, sei. É melhor que ver bunda de macho, pelo menos.
-Ah, vá, vá, fica quieto e faz o que eu mandei.
O mais novo nem discordou. Realmente trabalhavam juntos há algum tempo. Eram muito amigos e todos sabiam disso. Ambos casados. Não, não.Não eram um casal. O mais velho casado há 10 anos e o mais novo casado há apenas 3. Trabalhavam juntos há quatro anos. O mais velho se distanciou.
-Pega o bisturi.
-Cara, eu ainda acho melhor a gente ver o que o defunto tem na carteira.
-O quê? O cara tem carteira?
-Tem.
-Ah, Senhor... Pega logo a carteira dele!
-Tá aqui, tá aqui.
Cuidadosamente abriram a carteira do tio. Papel de bala, nota de R$1,00 amassada e rabiscada com simpatia, patuás, moedas de 5 centavos e nada de documentos. O engavetado até que tava bonitinho. Calça jeans, camisa azul e um casacão preto. Tênis meio surrado, mas tá valendo. Era quase um "mendigo-frufru".
-Nada?
-Nada.
-Ok, então vamos abrir.
-Tá louco? Tem que ver o lado de fora,antes de abrir!
-Ok, você vê. Eu vou tomar um café.
Com ar de superioridade, o mais experiente tirou as luvas cirúrgicas e jogou no lixo. O novinho espiava de longe o seu "superior" assoprar o copinho de plástico, a fim de esfriar o cafezinho.
-Hunf.
Analisa o corpo de frente. Cabeça, tronco, membros - todos - e faz uma careta ao passar pela área perto da cintura.Nada de hematomas ou sinais de espancamento, atropelamento ou similares. Nada de escoriações. Vira o presunto de costas. Cabeça, tronco, membros e o "presunto", propriamente dito. Nada. Escuta um barulho.
-Hein? Blah, deve ter sido o ar condicionado.
Nota uma leve temperatura no corpo do ser, na maca, mas releva. "O cara deve ter acabado de morrer."
-Oh, Geraldo, vem ver aqui.
O homem joga o copinho de plástico no lixo, pega mais um par de luvas e chega perto do sujeito estiradão na maca.
-Que aconteceu?
-O cara fez um barulho estranho.
-Barulho? Estranho? Já viu morto fazendo barulho?
-Claro que não, é por isso que eu to com a pulga atrás da orelha.
-Ah, vá, esse cara já bateu as botas, não precisa se preocupar.
-Tá bom, se você diz...
-Tá, pega lá o bisturi, vamos abrir.
Marco, o mais novo, foi pegar o bisturi. Cuidadosamente, os dois colocaram as máscaras e se aproximaram do tronco do rapaz. Marco colocou o bisturi e começou a rasgar. Com menos de 1,5 cm de corte, o susto:
-AaaaaaaaaaaaaaaaaahfilhodaP#$%@desgraçadoquemmandoumecortarassim?Ondejáseviu,táficandolouco,rapaz?
-AAAAAAAAAAAAAAAARRRRRRRRRRRRRRRGH!!!! O MORTO TÁ VIIIIIVO!!!
Qual não foi a surpresa dos dois médicos ao perceberem que o defunto não era defunto. Óbvio que os amigos ficaram brancos feito vela. Não sabiam se tremiam, se falavam, se ficavam ou se corriam.
-O...o...senhor tá... tá... vivo?
-Claro que eu to vivo, não tá me vendo, não? Que é que eu to fazendo aqui?
-Ah, o senhor foi achado na Praça da Sé caído no chão...
-Quer dizer que não se pode nem mais tirar um cochilo durante a noite que "neguinho já acha que você tá morto" e te leva pro IML?
-Ah, mas...
-Aaah, dá licença que eu tenho mais o que fazer.
E desceu da maca peladão, pegou a mala vazia, fez um bolinho com as roupas e foi saindo da salinha.
-Onde tem um banheiro, hein?
-É a segunda porta à direita - respondeu Geraldo, completamente pasmo.
-Brigado... Pelamordedeus, tinha que ser nessa cidade, mesmo... bando de idiotas aproveitadores...
-Não falei que o cara não tava morto?
-Aaaah, vá, vá, vá, não enche. Vai limpar a enfermaria que eu tenho mais o que fazer.
Dizendo isso, Geraldo deixou a bagunça às custas de Marco e continuou caminhando pelo corredor. Ao passar pela porta do banheiro, ouviu o quase morto reclamando.
-Hunf, pessoas...Argh.
E sentou na cadeira ao lado da garrafa de café. Puxou um copinho da estrutura metalizada na parede e apreciou o sabor amargo da bebida.

Nada como mais um dia de trabalho.

domingo, abril 08, 2007

Sumiu

E quando sentou em frente ao Computador, a palavra sumiu. O texto evaporou. A frase caiu.









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